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Meu nome é Paula, embora minha avó materna tenha feito e entregue até pulseira de ouro com o nome Ana Paula para minha mãe. Não gosto de nome duplo, disse ela, Maria Helena. Hoje em dia, parece se arrepender: "Podia ter feito essa sua vontade", diz, com a cor da saudade nos olhos. Minha avó se foi quando eu ainda nem sabia escrever. 

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E falar em escrever, é isso que faço hoje. Quer dizer, tento, todo dia. A newsletter surgiu da dúvida: o que quero dizer? E cresceu com as várias outras que foram surgindo no caminho. Fui tentando, duvidando, reinventando. Fui escrevendo. 

 

Escrevo para ensaiar a minha voz, partilhar obsessões, praticar isso de viver sonhos, inventar histórias, entender minhas verdades.

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Mas não escrevo só.

 

Hoje, a newsletter é um espaço múltiplo, com espaço para muitas outras escritoras e boas conversas com as leitoras mais queridas dessa internet.

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A sorte é encontrar pelo caminho mulheres tão generosas: que dão a mão, expandem a conversa, desde sempre me mostrando um lugar ao qual pertenço e me incentivando a continuar. A sorte é você estar aqui lendo essas palavras.

 

Obrigada por isso.

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Texto da newsletter
Edição #139

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Por Paula Medeiros

Eu nunca havia ouvido falar no nome Louise Bourgeois até ter em mãos o Pequena coreografia do adeus, segundo romance de Aline Bei. A obra da capa, États modifiés, foi escolhida pela própria Aline para acompanhar o título de seu segundo livro. Ela me contou ter se deparado com a imagem enquanto lia os diários de Louise. Ou seja: em meio a um mergulho imenso na intimidade da artista. A pintura quer, e consegue, causar um certo espanto. Esse é um traço característico de toda a obra de Louise – e, devo dizer, de Aline também. Uma poesia meio assombrosa. É para transitar entre estranheza e a admiração, fazendo jus ao próprio mantra de Louise: “eu quero realmente preocupar as pessoas, incomodá-las”.

 

Semana passada, em uma visita ao museu de Serralves, no Porto, pude ver Louise mais de perto. Não vi logo as explicações sobre cada uma de suas obras ali expostas, então fiquei naquele cenário típico: perambulando pelos corredores como uma observadora sem muita compreensão do que via. Uma criança frente a algo absurdo, a sensação de mal saber como reagir. Olho para o lado, disfarço? Ou encaro essa afronta?  

 

Isso de ver e imaginar e não ter respostas pode ser – e muitas vezes é – suficiente. Algumas coisas bastam existir assim. Outras, nos chamam para ir além, atiçam a curiosidade da pesquisa. Gosto demais da possibilidade de conhecer o humano por trás daquilo que me atrai no que vejo, leio e ouço. A dicotomia obra-artista é assunto espinhoso em meu coração. Gosto de espiar a história de vida da pessoa, entender o que a move.  

 

Louise foi uma criança nos subúrbios de Paris, e cresceu ajudando os pais no comércio de restauração de tapeçaria que tinham. Ela fazia ajustes e desenhos nos tecidos. A tarefa nunca lhe fez ser vista como uma criança talentosa, ou sequer com inclinação artística. A arte não foi um caminho óbvio desde cedo. Foi só depois de ter estudado filosofia e matemática que deu os primeiros passos nessa direção. Em certo momento da trajetória, ouviu do pintor Fernando Léige que sua sensibilidade não era a de uma pintora, mas sim de uma escultora. Certeiro, sim – pero no mucho.

 

De fato, as esculturas de Louise, mais que qualquer outra coisa, foram cruciais para sustentar seu prestígio e reconhecimento. No entanto, ela nunca deixou de desenhar e pintar. Também escrevia, aliás, criando pequenas narrativas para acompanhar gravuras. Não importou, enfim, se ela era ou não considerada talentosa para o desenho, na percepção rasa que temos da palavra. O que importou foi ela ter feito uma escolha. A escolha de, por diferentes caminhos, buscar transformar suas inquietações em algo externo, concreto, impactante. Uma escolha firme e contínua. 

 

Por mais de 50 anos, Louise viu poder curativo na criação. Abraçou a arte para enfrentar e expor o sentimento de abandono que a acompanhou por toda a vida, marcado por eventos distantes, como a doença e morte da mãe. Tudo que produziu foi inspirado em sua infância, a qual "nunca perdeu o mistério, a magia e o drama”. Em uma das paredes do Serralves, lemos suas palavras em letras vermelhas:  

 

Tenho estado prisioneira das minhas memórias e meu objetivo é livrar-me delas.

 

Aos 98 anos, em 2010, Louise morreu por insuficiência cardíaca. Suas últimas obras haviam sido finalizadas na semana anterior. Até o fim, ela fez o que queria e acreditou que a arte lhe garantia sanidade. Uma artista tão humana. A ideia de gênio não é uma definição que me comove. É a humanidade de Louise que me toca. Há algo mais analítico e óbvio do que querer a vida inteira curar a criança ferida que fomos? Ela fez disso sua trajetória e sua sobrevivência. É genial, pode-se dizer, e vou concordar, mas sigo atenta à força de expressão.  

 

Apesar das décadas de trabalho, seu nome levou tempo para alcançar o status que hoje tem. No entanto, não ter sido aclamada antes pelo meio artístico de Nova York – para onde se mudou ainda jovem – é algo que, na verdade, considerou a primeira grande sorte em sua vida. Isso lhe deu a oportunidade de passar pelo menos quinze anos produzindo, sem distrações. 

 

Aprendo com Louise e vários outros artistas que não existe arte sem devoção. Vejo essa verdade se confirmar o tempo todo. Ainda essa semana, vi o trecho de uma entrevista com o diretor japonês Akira Kurosawa na qual ele oferece conselhos a jovens aspirantes a cineastas. Seu discurso é esse: sem paciência, não há criação. Em suas palavras mais exatas, “a coisa mais essencial e necessária para um escritor é ter tolerância para enfrentar a tediosa tarefa de escrever uma palavra de cada vez.” O conselho me lembra a provocação de Marcelino Freire, outro humano dedicado a ser artista. Decidido a ser artista. Em seu curso imperdível, ele brinca, mas não mente: muita gente quer publicar, pouca gente quer escrever.  

 

O sonho impulsiona, mas só a decisão repetitiva deixa o terreno fértil. Fazer, dia após dia, falhar, repetir, fazer e falhar de novo, melhorar, falhar mais vezes, melhorar ainda mais, e fazer tudo de novo outra vez. Porque fazer é preciso.

 

Kurosawa aconselha qualquer um que queira seguir seu impulso artístico a lutar veementemente contra a tentação de desistir no meio do processo. O abandono corre risco de virar hábito, ele alerta – e esse hábito é o muro que divide aspirantes de criadores. “Escreva até o fim, não importa o que aconteça”, reforça. Dois anos antes de morrer, quando perguntaram a Louise também sobre que conselho daria a jovens artistas, ela disse: “não se contamine com a inveja, não se deixe enganar por sucesso e dinheiro e... não deixe que nada se coloque entre você e seu trabalho.” 

 

A arte é uma obsessão infantil esculpida pela teimosia adulta. Vem da entrega física, que supera o campo etéreo do desejo. A jornada artística não cria magia (somente) quando chega a um resultado. Ela é a própria mágica.  

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